domingo, 11 de julho de 2010

Os novos reis do xadrez

O melhor mestre enxadrista já não tem chance alguma diante de um computador. A disputa é entre os programadores.
No ano de 1770 no palácio do império austro-húngaro, em Viena. Para uma plateia que incluía a imperatriz Maria Teresa, o barão húngaro Wolfgang von Kempelen apresenta uma invenção fantástica: um autômato de madeira que sabe jogar xadrez. Fantasiado com turbante, um busto, chamado O Turco, movia com braços mecânicos as peças sobre uma mesa. Durante o jogo, revirava os olhos, assentia com a cabeça e se inclinava em direção ao tabuleiro. Jogava relativamente bem e vencia a maioria das partidas. Foi uma sensação.

Durante décadas, o autômato foi exibido em feiras na França e nos Estados Unidos. Derrotou Napoleão Bonaparte e Benjamin Franklin. Inspirou artigos do escritor americano Edgar Allan Poe e novelas de suspense. Depois de anos, porém, descobriu-se que não passava de uma fraude. Espremido debaixo da mesa estava um jogador, às vezes um anão, que "pensava" pelo Turco. Era ele quem mexia as pedras por meio de um sofisticado mecanismo.

O computador democratizou o jogo. Um software que disputa títulos mundiais custa US$100

Até alguns anos atrás, a história do Turco era lembrada pelos enxadristas profissionais para ridicularizar os programas de computador que jogavam xadrez. Era impossível, diziam os enxadristas, criar uma máquina capaz de derrotar o ser humano num jogo de xadrez.

Era. Esse tempo acabou em 1997, quando o então campeão mundial, Garry Kasparov, foi derrotado pelo supercomputador Deep Blue, da IBM, numa série de seis partidas. A dúvida, hoje, não é mais se o computador é capaz de derrotar o ser humano. E essa dúvida era, no fundo, um problema falso, uma vez que todo programa de computador costuma ser feito por seres humanos.

A dúvida passou a ser a seguinte: qual é o melhor programa que joga xadrez? Hoje, são os autores desses poderosos softwares que costumam conduzir as maiores disputas no jogo.

São batalhas apaixonadas e tensas, em que tudo o que os autores fazem é assistir ao desempenho de suas criações digitais. "Os computadores hoje são mais criativos que os homens", diz Shay Bushinsky, professor de Inteligência Artificial da universidade de Haifa, em Israel, e um dos programadores do software enxadrista Junior.

"Eu o programo, mas de sua análise saem ideias que nunca imaginei. É como se ele fosse um filho a quem eu acho que ensinei tudo, mas que me surpreende com ideias novas."

O maior símbolo da supremacia dos bits no mundo do xadrez é um computador batizado Hydra, como o monstro de várias cabeças da mitologia grega. Financiado por um dos herdeiros do reino dos Emirados Árabes Unidos, Hydra é um supercomputador com 32 processadores trabalhando em paralelo, com capacidade para realizar aproximadamente o dobro das operações dos maiores computadores dos bancos brasileiros. Numa partida de xadrez, isso significa que o computador pode analisar 200 milhões de lances por segundo. Um enxadrista de renome, algumas dezenas.

No primeiro lance de xadrez, um jogador tem 20 opções diferentes para escolher. Logo depois da abertura, há 35 possibilidades para cada jogador. No lance seguinte, o número chega a 12.025. Para a próxima jogada, há 1,5 milhão de lances possíveis. Três jogadas depois, 1,8 bilhão.

Mesmo para um supercomputador como o Hydra, é impossível analisar tantas possibilidades. Foi esse o grande problema dos primeiros programas de xadrez, nos anos 50. Eles analisavam todas as possibilidades, mesmo as mais absurdas. Demoravam muito nos cálculos e perdiam facilmente para um enxadrista. A partir dos anos 80, os programadores conseguiram criar sistemas de avaliação para os lances. Hoje, um bom software descarta logo de cara metade dos lances. Mesmo assim, ainda são necessários processadores superpotentes para avaliar cada jogada.

No ano de 2007, os patrocinadores do Hydra organizaram uma série de seis partidas contra o grande mestre inglês Michael Adams, 11º do ranking mundial. O computador ganhou cinco e empatou apenas uma partida. "Hydra derrotaria qualquer humano. Não tive chance alguma", disse Adams.

Eis o que afirmou, depois do confronto, o estatístico austríaco Chrill Donninger, responsável pelo software do Hydra:"Não tem graça jogar contra humanos. É o que eu chamo Lei Chrilly": no meio da partida, em cada dez lances, até o mais forte grande mestre vai escolher uma vez a opção que é apenas a segunda melhor. Hydra notará a falha na hora. Quando o mestre perceber, já perdeu. Aprendo mais jogando contra outros computadores.

Um jogador mediano usa memória, lógica e intuição para decidir uma jogada. "Não uso partidas de mestres para fazer meu programa. Eles erram muito", diz Amir Ban, do software Junior. As máquinas ainda levam outra vantagem: não sofrem pressão psicológica. Jogadores chegam a perder quilos durante um torneio. Crises nervosas são comuns.

No fim dos anos 60 e início dos 70 do século passado, vários adversários do americano Bobb Fisher se internaram em clínicas depois de derrotas humilhantes. Para atrapalhar os adversários, grandes mestres já fizeram de tudo.

O russo Aleksander Alekhine soprava a fumaça do charuto. O letão Mikhail Tahl, depois de um lance, andava de um lado para o outro fazendo barulhos com a boca. O exilado russo Viktor Korchnoi acusava a polícia secreta soviética de um complô contra ele. Obviamente, nada disso funciona contra um computador.

Essa tensão, agora, costuma se reproduzir entre os programadores. Numa reportagem recente, a revista New Yorker afirma que há tamanha tensão no ar durante as partidas entre computadores que alguns autores dos programas costumam nem falar.

Numa partida contra um dos principais rivais do Hydra, o programa Shredder, os programadores dos dois computadores se reuniram para observar, como dois adversários que analisam o andamento do jogo.

A partida ficou tão complexa que nenhum humano, incluindo vários mestres, sabia dizer quem tinha a vantagem. "Que esporte estúpido. Não sei o que fazer. Sinto-me como o passageiro carona de um carro de Fórmula 1", disse Donninger, o criador do Hydra. Acabou vencendo.

As apostas pró-computador são de três para um. "Uma Ferrari corre mais rápido que o Carl Lewis e um computador pode surrar qualquer um no xadrez. Entendido, vamos voltar a nossa vida normal", afirmou Howard Goldowsky, na revista americana Chess Cafe .

Com o barateamento do processamento dos computadores, começa a haver uma democratização no acesso aos bons programas. Um ótimo software, como o Zappa, pode ser baixado de graça.

Um xeque dos Emirados Árabes está por traz do mais poderoso programa que joga xadrez o Hydra

Outros, que chegam a disputar títulos mundiais como o Junior e o Fritz, podem ser comprados por US 100. O dono do Hydra, o xeque Tahnoon Bin Zayed al-Nahyan, se diverte colocando sua máquina para massacrar adversários pela internet sob o pseudônimo de zor-champ.

"O Hydra não é apenas uma experiência científica de xadrez", diz o paquistanês Ali Nasir Mohammed, um dos chefes do projeto. "A partir desse projeto, queremos desenvolver um supercomputador barato para atividades que precisam de muitos cálculos com enorme velocidade. Sistemas como o Hydra podem ser usados para a identificação de digitais e testes de DNA."

Seria isso uma forma de inteligência? "O cérebro é como uma máquina", afirma o americano Mark Greenberg, professor de Filosofia da Universidade de Los Angeles, EUA.

Em princípio, não há nenhuma razão para que um computador não pense, tenha crenças e seja inteligente. O filósofo americano John Searle, porém, afirma o contrário. Nos anos 80, ele causou furor ao rebater a idéia de um computador inteligente com uma teoria chamada "quarto chinês."

Em uma situação hipotética, Searle pede que se imagine alguém que não saiba chinês, isolado num quarto, com um livro de regras sobre a escrita chinesa. Essa pessoa recebe papéis com os ideogramas debaixo da porta. Com seu manual, consegue traduzir os caracteres mesmo sem saber o que está decifrando.

Segundo o professor, é assim que funciona um programa de computador. Ele manipula os símbolos necessários para uma tarefa, mas não "entende" o significado dela. Mesmo pesquisadores de inteligência artificial concordam com Searle quando o tema é xadrez. Como se trata de um jogo de possibilidades finitas, uma máquina de calcular superpotente teria, em tese, maior chance de vencer que o cérebro. Mas em jogos como o chinês Go, que exige mais intuição e menos cálculo, nenhum computador foi ainda capaz de bater o ser humano.

Fonte: Revista Época - Ciência e Tecnologia

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